
Um corpo estranho
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Acerca de esta escucha
Já se sentiu estranhe? Não deslocado de um lugar, mas deslocado do próprio corpo, como se ele fosse uma coisa em constante movimento, sempre um pouco à frente do que você consegue nomear. Um corpo que não cabe, que não responde, que não entende nem é entendido. Um corpo que escorrega entre os dedos, como se estivesse sempre viajando – entre normas, desejos, possibilidades.
Foi com essa inquietação que me encontrei no texto da Guacira Lopes Louro. "Um corpo estranho". Só o título já parece um espelho. Há algo de profundamente político nesse corpo que se recusa a obedecer. Que atravessa fronteiras impostas e tropeça no caminho dado. Que carrega a estranheza não como um erro, mas como evidência de que há algo mais por vir.
Esse corpo, que desde cedo escutou comandos – “sente direito”, “fala mais baixo”, “se comporta” – é o mesmo que, com o tempo, aprendeu a se perguntar: mas de quem é esse roteiro? Porque parece que todos nós nascemos com um mapa traçado antes mesmo de sermos nomeades: “é menino”, “é menina”, e então o mundo vai preenchendo os espaços com obrigações, expectativas, renúncias. Você tem que se vestir assim, se portar assim, amar assim. E tudo aquilo que foge disso vira ameaça.
Mas ameaça de quê? Da estabilidade? Da família tradicional? Da “boa moral”? Vai ver o que esse corpo estranho ameaça, na real, é uma mentira muito bem contada – aquela que diz que há um jeito certo de ser. Que tudo está dado, definido, decidido. Mas e quando o corpo não se encaixa? Quando não obedece? Quando desvia?
Eu cresci com essa sensação de desencaixe. Sentia que todo mundo tinha entendido uma regra secreta da qual eu nunca soube. E então, em vez de me conformar, comecei a testar. Brinquei com formas, roupas, modos de falar, de amar, de desejar. E percebi que o problema não era o que eu fazia – era o que me diziam que eu deveria ser.
Guacira diz que a viagem transforma o corpo. Que somos modificades pelo caminho. E talvez seja isso: não há chegada. Há travessia. E nessa travessia, o corpo vai se inventando, se refazendo, rasurando o roteiro. A drag, que se monta exagerando o feminino, mostra justamente isso: o gênero é construção. E se tudo é construção, então tudo pode ser reinventado.
Ser esse corpo estranho é viver à margem da norma – e ao mesmo tempo, é o que mais expõe a instabilidade da própria norma. É dizer que não existe essência, só performance. E que a liberdade está em poder desmontar, desmontar-se, montar-se de novo.
No fundo, tudo isso não é sobre “ser diferente”. É sobre existir. É sobre não precisar mais se esconder. É sobre parar de pedir desculpa por ocupar espaço. É sobre transformar a dor da inadequação em um lugar de potência. Porque, se ser quem somos incomoda o mundo, talvez seja o mundo que precise se reorganizar.
E como diz Preciado, talvez não nos falte coragem. Talvez o que nos falte é o cansaço de fingir. Porque a verdadeira revolução começa quando deixamos de tentar caber – e começamos a criar, enfim, um espaço em que possamos simplesmente ser.
@wgonds
Música utilizada: Jack Will - Mantra Minazz